A primeira menção da Quaresma na história da Igreja vem do Concílio de Nicéia, em 325 d.C. O Concílio de Nicéia é mais conhecido pela profissão de fé – o ‘Credo Niceno’ – que ainda é recitado na maioria das paróquias todos os domingos, imediatamente após o sermão. No entanto, o Concílio também emitiu vinte cânones de natureza prática, tratando de vários aspectos da vida da Igreja, e o quinto destes cânones fala da Quaresma.
A palavra usada para a Quaresma neste quinto cânon é tessarakonta (no grego original), que significa ‘quarenta’. Pela primeira vez na história registada, temos mencionado este período de preparação para a Páscoa como durando quarenta dias. Muito antes, os cristãos tinham introduzido o Domingo de Páscoa para celebrar a ressurreição de Cristo. Pouco depois, um período de dois ou três dias de preparação, especialmente comemorativo da paixão e morte de Cristo – a parte “Semana Santa” da Quaresma de hoje – tinha sido adoptado por várias comunidades cristãs. Mas a primeira menção de um período de preparação de quarenta dias provém deste quinto cânon de Nicéia.
O tempo foi adoptado à imitação dos quarenta dias que Jesus passou no deserto, no início do seu ministério público:
- Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. Ele jejuou por quarenta dias e quarenta noites e depois ficou faminto. (Mateus 4:1-2)
- Cada ano nos dás esta estação alegre quando nos preparamos para celebrar o mistério pascal com a mente e o coração renovados. Tu nos dás um espírito de reverência amorosa por ti, nosso Pai, e de serviço voluntário ao próximo.Como recordamos os grandes acontecimentos que nos deram uma nova vida em Cristo,levas à perfeição dentro de nós a imagem do teu Filho,
- 109. O tempo da Quaresma tem um duplo carácter: antes de mais, recordando ou preparando-se para o baptismo e pela penitência, dispõe os fiéis, que ouvem mais diligentemente a palavra de Deus e se dedicam à oração, para celebrarem o mistério pascal. Este duplo carácter deve ser mais valorizado tanto na liturgia como na catequese litúrgica. Por isso:a) Mais se devem utilizar as características batismais próprias da liturgia quaresmal; algumas delas, que costumavam florescer em dias passados, devem ser restauradas como pode parecer bom.b) O mesmo se aplica aos elementos penitenciais. Quanto à instrução, é importante imprimir na mente dos fiéis não só uma consequência social do pecado, mas também aquela essência da virtude da penitência que leva à detestação do pecado como ofensa a Deus; o papel da Igreja nas práticas penitenciais não deve ser passado, e o povo deve ser exortado a rezar pelos pecadores.110. Durante a Quaresma a penitência não deve ser apenas interna e individual, mas também externa e social. A prática da penitência deve ser fomentada de maneira que seja possível no nosso tempo e nas diversas regiões e segundo as circunstâncias dos fiéis; deve ser encorajada pelas autoridades mencionadas no Art. 22 .Não obstante, que o jejum pascal se mantenha sagrado. Seja celebrado em toda a parte na Sexta-feira Santa e, sempre que possível, prolongado ao longo do Sábado Santo, para que as alegrias do Domingo da Ressurreição sejam alcançadas com a mente elevada e clara.
- É desejável que a liturgia das estações quaresmais e pascais seja restaurada de modo a dispor os corações dos catecúmenos para celebrar o mistério pascal, em cujas solenes cerimónias renascem para Cristo através do baptismo. Mas esta iniciação cristã no catecumenato deve ser cuidada não só pelos catequistas ou sacerdotes, mas por toda a comunidade dos fiéis, para que desde o início os catecúmenos sintam que pertencem ao povo de Deus. E como a vida da Igreja é apostólica, também os catecúmenos devem aprender a cooperar de todo o coração, pelo testemunho da sua vida e pela profissão da sua fé, na difusão do Evangelho e na edificação da Igreja. (Ad gentes, 14).
Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. Ele jejuou por quarenta dias e quarenta noites e depois ficou faminto. (Mateus 4:1-2)
Em muitas línguas a palavra para Quaresma implica ‘quarenta’: Quaresima derivada de quaranta (quarenta) em italiano; Cuaresma derivada de cuarenta em espanhol; Carême derivada de ‘quarante’ em francês. A palavra inglesa ‘Lent’ tem outra, muito bonita derivação. Vem da palavra anglo-saxônica (início do inglês) que significa ‘alongar’. A Quaresma vem numa altura em que as horas ou o dia estão a ‘alongar-se’, à medida que se aproxima a Primavera, e por isso é uma altura em que também nós podemos ‘alongar’ espiritualmente, quando podemos esticar-nos e crescer no Espírito.
Não devemos, portanto, colocar demasiada ênfase nos nossos próprios esforços. Assim como o sol foi pensado para fazer o trabalho de ‘alongar’ os dias durante o início da primavera, também é o sol – no sentido do calor e luz de Deus – que faz esse trabalho no nosso ‘alongamento’ e crescimento em Cristo. Na língua inglesa, de fato, temos uma bela peça sobre as palavras ‘sol’ e ‘filho’, que são pronunciadas de forma idêntica. Assim como o sol foi visto para fazer o trabalho de ‘alongamento’ dos dias na primavera, também é o Filho de Deus, Jesus Cristo, que faz o trabalho de ‘alongamento’ em nosso crescimento espiritual. Esta imagem nos proporciona um conforto em nosso ocupado mundo moderno, onde a hiperatividade pode se tornar a norma. O nosso papel durante a Quaresma é cooperar com a graça e as iniciativas de Deus, num sentido de relaxar na presença de Deus, em vez de forçar o ritmo com os nossos próprios esforços.
A Escritura e a Igreja primitiva sugeriram uma variedade de formas em que este ‘alongamento’ pode acontecer, uma variedade de formas em que podemos cooperar com a graça de Deus. O trecho do capítulo 4 do Evangelho de Mateus, que acaba de ser mencionado, enfatizava o papel do jejum. O cânon 5 do Concílio de Nicéia enfatizou a importância do perdão e da harmonia dentro da comunidade cristã. Assim, um sínodo (conselho da igreja local) deveria ser realizado “antes da Quaresma, a fim de que, sendo toda a mesquinhez posta de lado, o dom oferecido a Deus possa ser imaculado”. Várias outras características da Quaresma vieram a ser atraídas, como veremos.
A Quaresma é muito ecuménica. Na época do Concílio de Nicéia, a Igreja ainda estava unida, Leste e Oeste. Estamos muito antes da triste divisão da Igreja em católicos e ortodoxos, que se deu no século XI. De fato, o concílio de Nicéia pertence principalmente à Igreja do Oriente: a cidade está na Turquia moderna. A maioria das igrejas protestantes reconhece a autoridade dos primeiros concílios e, portanto, pelo menos tacitamente, dos cânones de Nicéia. O artigo 21 dos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, na forma promulgada pela primeira vez em 1563, declara explicitamente que deve ser dado respeito ao concílio de Nicéia. Por isso, ao cumprir a Quaresma, os cristãos podem celebrar as raízes orientais da sua fé. Podem alegrar-se também de que, apesar das tristes divisões que ainda subsistem, a unidade entre eles é fundamental. Os cristãos estão muito mais unidos do que divididos.
É importante recordar que a Quaresma é um tempo de alegria. O primeiro Prefácio para a Missa da Quaresma faz com muita elegância:
Cada ano nos dás esta estação alegre
quando nos preparamos para celebrar o mistério pascal
com a mente e o coração renovados.
Tu nos dás um espírito de reverência amorosa por ti, nosso Pai,
e de serviço voluntário ao próximo.
Como recordamos os grandes acontecimentos que nos deram uma nova vida em Cristo,
levas à perfeição dentro de nós a imagem do teu Filho,
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Talvez seja desnecessário sublinhar este aspecto alegre da Quaresma, mas os mais velhos entre nós podem lembrar-se de uma ênfase mais negativa. Como meninos na escola, fomos instados a desistir dos doces durante a Quaresma, e os meses de fevereiro e março foram de qualquer forma um período bastante sombrio. Vários prazeres, tais como ver filmes, foram cancelados. É claro que alguns ascetismos são importantes, mas é essencial colocar a disciplina no seu contexto próprio e positivo: purificação para que possamos receber mais plenamente os dons de Deus.
Esta dupla dimensão da Quaresma – alegria e preparação – é elaborada no decreto do Concílio Vaticano II sobre a Liturgia (Sacrosanctum concilium, 109-10). Vale a pena citar a passagem na íntegra:
O Concílio de Nicéia em 325 e o Concílio Vaticano II podem ser vistos como os dois pólos da história da Quaresma: Nicaea reconheceu a sua existência enquanto o Vaticano II confirmou a sua importância. Os dezasseis séculos entre os dois Concílios assistiram a uma variedade de desenvolvimentos na forma como os cristãos observaram esta estação.
Em uma data precoce, a última semana da Quaresma – ‘Semana Santa’ – tornou-se distinta e focalizada nos últimos dias da vida de Cristo na terra, seguida da sua ressurreição. Este foi um desenvolvimento óbvio, na medida em que a semana estava ligada à cronologia geral sugerida pelos escritores do evangelho (a cronologia precisa é debatida por estudiosos). A “semana” começa com o Domingo de Ramos, comemorando a entrada de Jesus em Jerusalém (Mateus 21:1-9; Marcos 11:1-10; Lucas 19:21-38; João 12:12-18). Passa para a ‘Última Ceia’ com os seus discípulos na Quinta-Feira Santa – ‘Maundy’ que deriva do mandamento latino, que significa mandamento, seguindo o convite de Cristo: ‘Um novo mandamento vos dou, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei’ (João 13,34) – e a sua oração no jardim do Getsêmani, seguida da sua prisão e do início do seu julgamento. Sexta-feira Santa – ‘boa’, no sentido de que é o dia em que se realiza a nossa redenção – comemora os amargos detalhes da paixão de Cristo: a sua flagelação e coroação de espinhos; a sua condenação por Pôncio Pilatos; a sua viagem ao Calvário; a sua morte na cruz; e o seu sepultamento. O Sábado Santo recorda tranquilamente o tempo de Cristo no túmulo, e o Domingo de Páscoa alegra-se com a sua ressurreição “ao terceiro dia” – “terceiro” no sentido de contar a sexta-feira, o sábado e o domingo.
A longa e precoce parte da Quaresma procurou reviver mais directamente os quarenta dias de Cristo no deserto, dando aos cristãos tempo apropriado para o sossego, a oração e a purificação. Os salmos e as leituras das Escrituras que compõem o Ofício Divino – as sete ‘horas’ de Matins (oração da manhã), Lauds (Louvor), Terce (terceira hora depois do nascer do sol), Sext (sexta hora), None (nona hora), Vespers (oração da noite) e Compline (oração final) – foram escolhidos para se harmonizar com este espírito ‘quaresmal’. As leituras durante a Semana Santa seguiram de perto a história apresentada nos evangelhos juntamente com leituras adequadas do Antigo Testamento e outras partes do Novo Testamento – especialmente notáveis são os quatro “Cânticos do Servo sofredor” do livro de Isaías (42,1-9; 49,1-7; 50,4-9 e 52,13-53,12) que fornecem as primeiras leituras nas Missas de segunda, terça, quarta e sexta-feira desta semana.
Cores apropriadas também foram escolhidas para os paramentos usados pelos sacerdotes e outros celebrantes nas missas litúrgicas. Durante a Quaresma prevalece a cor roxa, que significa penitência e esperança; o vermelho é escolhido para a Sexta-feira Santa, que significa derramamento de sangue de Cristo e seu martírio; enquanto a cor para a Quinta-feira Santa, bem como para a vigília pascal e a própria Páscoa é branca, celebrando o triunfo de Cristo. Nessas cores encontramos a devida atenção às dimensões visíveis e sensíveis da liturgia e da vida humana.
Muitos dos detalhes da liturgia da Quaresma de hoje – incluindo o uso do inglês e de outras línguas vernáculas em vez do latim – surgiram através das reformas inauguradas pelo Concílio Vaticano II, pelas quais podemos estar verdadeiramente gratos. A reforma da liturgia da Semana Santa, porém, foi em grande parte obra do Papa Pio XII, na década anterior à convocação do Concílio Vaticano II. Outra recuperação recente da Igreja primitiva é a recepção dos catecúmenos na Igreja na quinta-feira santa, que, como a celebração da Última Ceia, é um dia particularmente apropriado para os catecúmenos receberem a Comunhão (a Eucaristia) pela primeira vez. Uma ocasião maravilhosa para mim ocorreu quando, durante um período de ensino na Malásia, tive o privilégio de testemunhar a recepção de uma centena de catecúmenos adultos, e a sua primeira comunhão, durante a liturgia da Quinta-feira Santa na igreja paroquial de São Francisco Xavier em Petaling Jaya.
Vaticano II ligou explicitamente o catecumenato e a Quaresma. Assim, podemos concluir adequadamente esta breve história da Quaresma, citando o decreto conciliar sobre a actividade missionária:
É desejável que a liturgia das estações quaresmais e pascais seja restaurada de modo a dispor os corações dos catecúmenos para celebrar o mistério pascal, em cujas solenes cerimónias renascem para Cristo através do baptismo.
Mas esta iniciação cristã no catecumenato deve ser cuidada não só pelos catequistas ou sacerdotes, mas por toda a comunidade dos fiéis, para que desde o início os catecúmenos sintam que pertencem ao povo de Deus. E como a vida da Igreja é apostólica, também os catecúmenos devem aprender a cooperar de todo o coração, pelo testemunho da sua vida e pela profissão da sua fé, na difusão do Evangelho e na edificação da Igreja. (Ad gentes, 14).
Norman Tanner SJ ensina História da Igreja na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma.
Pontifícia Universidade Gregoriana