Deus como Pai

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Os cristãos de hoje tomam como certo que Deus é nosso Pai, mas poucas pessoas param para pensar o que este nome realmente significa. Sabemos que Jesus ensinou seus discípulos a orar “Pai Nosso” e que a palavra aramaica Abba (“Pai”) é uma das poucas que Jesus usou e que não foi traduzida em nosso Novo Testamento. Hoje em dia, quase ninguém acha isso estranho e muitas pessoas se surpreendem ao descobrir que os judeus da época de Jesus, e até mesmo os seus próprios discípulos, ficaram intrigados com os seus ensinamentos. Isto porque o significado mais profundo e as implicações mais amplas do termo “Pai” são em grande parte desconhecidos hoje em dia. O nome tornou-se tão difundido e geralmente aceite que já não o questionamos, e por isso muitas vezes deixamos de perceber como é importante para a nossa compreensão de Deus.

Pré-Cristão Compreensões de Deus como Pai

Jesus causou uma reacção quando falou de Deus como seu Pai, mas será que ele inventou essa ideia? Não existiam precedentes no Judaísmo (ou talvez mesmo entre os pagãos) para o seu ensino? A afirmação de Jesus de que Deus era seu Pai ocorreu pela primeira vez em um debate sobre o sábado de descanso. Jesus afirmou que era apropriado para ele realizar curas no Sábado porque, em suas palavras: “Meu Pai está trabalhando até agora, e eu estou trabalhando” (João 5:17). Em outras palavras, embora Deus descansasse no sétimo dia do seu trabalho de criação, seu trabalho de preservação e, por fim, de redenção ainda estava em curso. Além disso, Jesus associou seu próprio ministério a essa obra contínua do Pai, levantando a questão de seu relacionamento de uma forma que antagonizava seus companheiros judeus. Como o Evangelho registra:

Foi por isso que os judeus procuravam ainda mais matá-lo, pois não só estava quebrando o Sábado, mas até mesmo chamando Deus de seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus (João 5:18).

Foi justificada a reação dos judeus? O Antigo Testamento raramente usa a palavra Pai como descrição de Deus, mas há pelo menos dois textos importantes nos quais ele o faz. Ambos são encontrados no final de Isaías e ocorrem no contexto do pecado e do arrependimento. O primeiro lê assim:

Você é nosso Pai, embora Abraão não nos conheça e Israel não nos reconheça; você, Senhor, é nosso Pai, nosso Redentor de outrora é seu nome (Isaías 63:16-17).

A segunda lê:

O Senhor, você é nosso Pai; nós somos o barro e você é nosso oleiro; todos nós somos a obra de sua mão. Não te zangues tanto, Senhor, e não te lembres da iniquidade para sempre (Isaías 64:8-9).

À primeira vista poderia parecer que Isaías estava chamando Deus Pai porque ele era o Criador de Israel, mas os assuntos não são tão simples como isso. Deus era o Criador de todo ser humano, não só de Israel, mas ele não tinha estabelecido uma relação de aliança com todos. Está claro pela maneira como Isaías se dirigiu a ele que ele considerava a conexão de Israel com Deus como algo especial, e diferente do que poderia ser dito sobre toda a raça humana. Para ele, chamar Deus Pai era reconhecer uma relação particular com ele. Nestes versículos, Deus é dirigido como Pai, não porque ele é o Criador de Israel, mas porque ele é o seu Redentor, o que revela a natureza da relação especial que Deus tem com o seu povo escolhido.

O contexto da aliança da paternidade de Deus também é expresso em outros textos do Antigo Testamento, embora a palavra “Pai” não seja especificamente mencionada. Considere, por exemplo, as palavras de Moisés:

Vós sois os filhos do Senhor vosso Deus… Porque sois um povo santo ao Senhor vosso Deus, e o Senhor vos escolheu para serdes um povo para o seu tesouro, dentre todos os povos que estão sobre a face da terra (Dt. 14:1-2).

Algo análogo aparece no Salmo 103:

Como um pai mostra compaixão para com os seus filhos, assim o Senhor mostra compaixão para com aqueles que o temem (Sl 103:13).

Similiarmente, em Jeremias encontramos o seguinte:

É Efraim meu querido filho? Ele é meu filho querido? Pois por mais que eu fale contra ele, eu ainda me lembro dele. Portanto meu coração anseia por ele; certamente terei misericórdia dele, declara o Senhor (Jr. 31:20).

Em cada um destes casos, o tema subjacente é que Deus é o Pai de Israel. Ele escolheu os israelitas como seus filhos, e porque Ele o fez, Ele os redimirá apesar da sua pecaminosidade. Sua paternidade se expressa nesse contexto de pacto e não faria sentido fora dele. Jesus trouxe esta dimensão à tona quando desafiou a suposição judaica de que eles eram os filhos de Abraão, assim como ele era. Ele reconheceu a afirmação deles de certa forma, mas continuou dizendo que, de fato, tanto ele quanto eles estavam fazendo o trabalho de seus pais espirituais, que não eram os mesmos. Jesus estava fazendo o trabalho de Deus seu Pai, mas os seus opositores judeus estavam fazendo o trabalho do diabo, a quem Jesus disse que era o verdadeiro pai deles – não Abraão. Isso irritou tanto os judeus que eles ficaram emocionados ao gritar que “Deus é nosso Pai”, um reconhecimento da mesma coisa que eles estavam criticando Jesus por dizer, mas uma afirmação que o Antigo Testamento testemunha (João 8:37-59). Assim, embora não fosse natural para os judeus, quando provocados dessa forma, eles estavam preparados para admitir que Deus era seu Pai no sentido da aliança.

Os povos não judeus eram bem diferentes disso. Muitas vezes eles estavam preparados para reconhecer a existência de uma figura do Pai divino, como vemos pelo nome de Júpiter (“Padre Jove”), mas nem sempre era claro o que isso significava. Para alguns, seu deus pai era um criador, mas para outros, e especialmente para os Platonistas nos tempos do Novo Testamento, o Pai era uma divindade oculta que habitava sobre os céus e não tinha contato direto com as coisas materiais. Em vez disso, ele tinha uma mente que produzia pensamentos e idéias, uma das quais era o Criador (Demiurge), que fez o mundo. A razão para esta distinção era que os Platonistas sabiam que o mundo é imperfeito, e por isso não poderia ter sido feito diretamente pelo Pai. Na igreja primitiva, havia pessoas a quem chamamos gnósticos, que assumiram esta forma de pensar. Eles acreditavam que Jesus Cristo era o Filho do Pai oculto, a quem ele havia enviado para redimir o mundo da obra do Criador (inferior). Nenhum cristão poderia aceitar essa idéia, porém, porque a revelação bíblica deixa claro que o Criador e o Redentor são o mesmo Deus. O Deus da Bíblia é o Criador de todos os seres humanos, mas o Pai somente daqueles que ele pretende redimir, e foi em seu Filho Jesus Cristo que ele revelou este propósito àqueles que ele havia escolhido para a salvação.

Jesus e Seu Pai

Cristãos chamam Deus de seu Pai porque foi isso que Jesus ensinou seus discípulos a fazer. Ele fez isso não para enfatizar que Deus era o seu Criador (embora ele fosse, é claro), mas porque ele era o seu Redentor. Jesus tinha um relacionamento único com Deus Pai que ele queria compartilhar com seus seguidores. Durante o seu tempo na terra, ele foi bastante claro sobre isso. “Aquele que me viu, viu o Pai”, disse ele (João 14:9). “Eu e o Pai somos um” (João 10:30). Havia alguns na Igreja primitiva que interpretavam versículos como estes para significar que Jesus era ele mesmo o Pai, meramente aparecendo na terra disfarçado. Essa visão não pode ser aceita, porém, porque em muitas outras ocasiões Jesus ou falou com seu Pai ou se referiu a ele de maneiras que deixam claro que o Pai é uma pessoa diferente. Isto é particularmente óbvio nas suas palavras na cruz. Quando ele disse: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lucas 23,34) e “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lucas 23,46) não há dúvida de que ele não estava falando consigo mesmo.

Ao mesmo tempo, também está claro no Novo Testamento que Jesus tinha a autoridade do Pai para dizer e fazer as coisas registradas dele nos Evangelhos, e que o que ele fazia era obra de Deus. Um bom exemplo disso ocorre no Evangelho de Marcos, quando Jesus demonstrou a um público cético que tinha o poder de perdoar pecados, uma prerrogativa que pertence somente a Deus (Marcos 2:6-12). Seus críticos estavam certos ao dizer que ao chamar-se Filho, Jesus estava se tornando igual a Deus, porque Pai e Filho compartilham a mesma natureza. O que distingue o Filho do Pai não é a qualidade de seu ser, que é tão divina quanto a do Pai, mas o funcionamento de sua relação, segundo a qual o Filho veio ao mundo para fazer a vontade do Pai.

Jesus revelou que o Pai tinha decidido redimir o mundo, não por si mesmo, mas através de seu Filho. O Novo Testamento nunca explica porque o Pai e o Filho estão relacionados um com o outro desta forma. Tudo o que podemos dizer é que ambos estão eternamente presentes na Trindade, mas porque um deles é o Pai e o outro é seu Filho é um mistério escondido de nossos olhos (João 1:1-3). Os pecados dos seres humanos tinham que ser pagos, não porque o Pai é vingativo, mas porque seus filhos humanos são importantes para ele. O que nós fazemos é importante, e se nossos atos são errados ele não pode simplesmente ignorá-los. O preço da rebelião contra Deus é a morte, porque Deus é a fonte da vida, e assim ser cortado dele é ser cortado da própria vida. Pessoas espiritualmente mortas não têm poder para pagar o preço por seus pecados – somente uma pessoa sem pecado pode fazer isso. É por isso que o Filho de Deus se tornou um homem. Ele sofreu e morreu, não só por nós, mas também pelo Pai, porque a justiça do Pai foi satisfeita pela sua morte expiatória. O Pai reconheceu isso levantando-o dos mortos e levando-o de volta ao céu, onde o colocou à sua direita como governante e juiz do mundo (Atos 2:32-33; Fil. 2:9-11; 1 Cor. 15:20-28).

O Pai e Nós

Pai e Filho permanecem pessoas distintas, mas trabalham juntos para a salvação daqueles que foram escolhidos. O Pai nos é revelado como o princípio da Divindade, aquele que planeja a obra de salvação e que envia o Filho para realizá-la. O Filho nos implora na presença do Pai e o Pai nos perdoa por causa da intercessão do Filho em nosso favor. Somos encorajados a orar ao Pai e capacitados a fazê-lo porque o Filho nos uniu a Ele em sua morte e ressurreição (Gal. 2,20). Por este ato, Jesus nos associou a Si mesmo como seus irmãos. A diferença é que Ele é o Filho divino e sem pecado do Pai por natureza, enquanto que nós somos pecadores que fomos adotados por Ele. O próprio Jesus disse o mesmo quando disse a Maria Madalena, depois da sua ressurreição, para ir ter com os seus discípulos, a quem agora chamou seus irmãos, e dizer-lhes o que estava para acontecer:

Não se apeguem a mim, pois ainda não ascendi ao Pai; mas vão ter com meus irmãos e digam-lhes: “Eu ascendo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus” (João 20:17).

Por natureza não somos filhos de Deus. Como suas criaturas, não temos nada em comum com o seu ser divino, mas pela presença residente do seu Espírito Santo, fomos integrados na vida da Trindade. É por causa desta presença do Espírito em nós que somos capazes de nos aproximar do Pai e ter um relacionamento com Ele. Como Paulo escreveu aos Gálatas:

Porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho em nossos corações, gritando “Abba, Pai! Então você não é mais um escravo, mas um filho, e se um filho, então um herdeiro através de Deus (Gal. 4:6-7).

Em termos práticos, a relação que o Filho nos deu com Deus Pai é análoga à sua. No Filho, nós nos tornamos herdeiros do reino do Pai, co-regentes com ele e até juízes dos anjos (1 Cor. 6:3). Este alto chamado vem com um preço, pois assim como o Filho glorificou seu Pai enquanto esteve na terra, assim também nós somos chamados a glorificá-lo (João 17:1-26). Não podemos fazer isto em nossas próprias forças, mas somente na e através da relação que o Pai entrou conosco, através do Filho e do Espírito Santo. Assim como tudo o que eles fazem é feito em relação ao Pai, assim também tudo o que somos chamados a fazer deve ser feito no contexto da obediência à sua vontade. É ao Pai que rezamos, por meio do Filho e no Espírito, porque esse é o padrão da nossa relação com Deus que Ele nos revelou. Oramos ao Pai porque nosso Criador é também nosso Redentor, e é nesse amor redentor que nós o conhecemos.

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